Diretor na Itália: uma troca de experiências entre líderes que se desafiaram fora do Brasil

Nesta conversa entre Ricardo Piccoli e Eduardo Abritta, profissionais de marketing que se tornaram líderes de grandes companhias fora do Brasil, conheceremos um pouco mais da experiência de Piccoli na Itália.

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A Itália desperta um grande fascínio ao redor do mundo. Poucos países podem competir com suas origens clássicas e sua tradição musical, literária, arquitetônica e artística, além, obviamente, dos prazeres de sua inconfundível culinária.

Também é um dos principais países com os quais nós, brasileiros, temos vínculo. A massiva chegada de italianos na segunda metade do século XIX e nas primeiras décadas do século XX contribuiu não somente para o desenvolvimento da nossa economia e industrialização do país, mas também para moldar aspectos culturais de nossa sociedade, principalmente no Sudeste e Sul no Brasil.

Marcas icônicas também se originaram por lá. Ferrari, Gucci, Diesel, Prada, dentre outras, ditam tendências de consumo e são objetos de desejo por todos os continentes. Eventos como a Semana de Moda de Milão repercutem mundialmente e são inspiração para outras marcas.

Através da Makers, tive a oportunidade de conhecer o Ricardo Piccoli, que atualmente é Category Director para a The Kraft Heinz Company, sediado na Itália. Conversamos sobre nossas experiências profissionais e a possibilidade de escrevermos algo em conjunto para nossas colunas. Foi assim que decidimos preparar um bate-papo para compartilhar as vivências do Ricardo nesse país tão incrível.

Eduardo: Ricardo, conta mais sobre seu histórico profissional e como surgiu a oportunidade de trabalhar na Itália?

Ricardo: A proposta para trabalhar aqui veio no fim de 2018. Eu estava perto de completar 10 anos de Red Bull e sentia que era hora de ver algo novo. Sempre tentei conectar minha carreira e a minha vida a uma sede que tenho de conhecer coisas novas e estar sempre me desafiando, o que nessa empresa incrível tinha me levado a 7 posições diferentes nos quatro cantos do Brasil. Minha última posição lá foi como diretor da Regional Nordeste e Norte onde conheci áreas do nosso país que poucos conhecem. Quando surgiu a oportunidade de ir para a Kraft Heinz, vi a possibilidade de ter impacto real no grande projeto de transformação da companhia, além de interagir com geografias, consumidores e categorias de produto diferentes. Entrei na empresa como diretor de categoria e marketing para a Itália. Depois, em 2020, mudamos a estrutura e assumi a Categoria Infantil e Médica para a Europa Continental, em 2021 nosso hub de inovações disruptivas (New Ventures) para a mesma região e agora, novidade das últimas semanas, estou a frente do nosso business de Foodservice (a unidade de negócio de produtos para restaurantes, bares, lanchonetes, hotéis – tudo onde o consumo acontece no local) para a mesma região da Europa Continental.

E: Como é morar na Itália? Imagino que seja uma experiência incrível, mas que deva apresentar desafios como em qualquer outro país, principalmente para os expatriados.

R: Bom, o resumo é que é incrível haha. Eu gosto muito de natureza, de esportes, de cultura e história, e claro que a Itália é um ponto fora da curva nessas coisas, então é um fit perfeito para mim. Comer e beber bem também é algo que eu sempre valorizei e, claro, nisso o país também dispensa comentários. Então realmente acho que aqui é um cantinho especial do mundo.

Mas, claro, nem tudo é perfeito. A língua é definitivamente um fator importante. Não foi um problema no trabalho, na nossa empresa tudo acontece em inglês devido ao ambiente bastante internacional. Mas no dia a dia, a Itália é diferente do que estamos acostumados em outros países na Europa, onde todo mundo interage bem em inglês como língua franca. Talvez os italianos e os franceses sejam os “menos entusiasmados” (alerta de eufemismo pesado) em se expressar em inglês, mesmo quando sabem a língua. Hoje acho que isso foi bom, pois me forçou a aprender a língua bem rápido, mas o início foi difícil. Chega um ponto que você precisa fazer coisas simples, como chamar um encanador, e tem muita dificuldade em fazê-las sem ser no idioma local. Soma-se também a burocracia dos órgãos públicos, que às vezes torna o país muito difícil de navegar para estrangeiros. Mas, com um pouco  (muito) de paciência e um básico domínio da língua italiana, tudo fica mais fácil.

E: A Itália foi um dos primeiros países a enfrentar a pandemia de COVID-19. As imagens da população em quarentena assustaram o mundo, anunciando o que outras nações passariam em seguida. Quais impactos a pandemia gerou para tendências de consumo no país e a relação dos consumidores com marcas?

R: Nossa, foi realmente caótico, pois foi o primeiro país a passar pela experiência da pandemia fora da China. Fomos pegos de surpresa quando ninguém esperava e muito menos sabia lidar com a crise. Os impactos de negócios para a empresa aqui foram gigantes e esse foi um período bem estressante. Coisas relativamente simples e estáveis, como planejamento de demanda, viraram um desafio gigantesco: na semana pré-lockdown as famílias fizeram uma corrida aos supermercados e aqui nossa principal linha de produtos tem a famosa “papinha de bebê” e leite infantil em pó. Fomos obviamente muito afetados, pois claro que na iminência de um lockdown, a primeira coisa na lista de compras dos novos pais era a comida para os seus filhos durante o período. Porém, depois da explosão de demanda inicial, foi muito difícil prever qual seria o real impacto disso no longo prazo – por ter mais produto em estoque as famílias poderiam começar a consumi-lo mais. Por outro lado, teriam mais tempo disponível para cozinhar a própria papinha feita em casa. Com a fábrica passando por severas dificuldades em manter a operação de forma segura, não podíamos errar justamente no cenário mais difícil possível de planejamento de demanda. Exigiu muita comunicação entre todas as áreas da empresa (das equipes de venda em lojas observando a demanda em tempo real, aos varejistas, ao nosso time de marketing, de planejamento de demanda e ao pessoal de fábrica) mas conseguimos superar bem esse desafio. Isso é só um exemplo das inúmeras complexidades que tivemos em um momento onde não existia “manual de instruções” para lidar com a crise e nem para gerenciar times durante o Covid. Fomos aprendendo por tentativa e erro. Na hora confesso que não foi fácil, mas essa experiência me trouxe boas lições sobre como gerenciar crises e “cisnes negros”.

Do ponto de vista geral, a mudança das tendências de consumo e relação com marcas, além dos pontos mais óbvios e de curto prazo causados pelas mudanças de rotina (mais consumo de produtos alimentares em casa ao invés de em restaurantes, por exemplo), acho interessantes aqueles impactos duradouros que tem mudado o zeitgeist e acelerado tendências que vão ficar aqui muito além do covid. A sensação de interdependência cresceu muito, aumentando ainda mais o já crescente interesse dos consumidores por sustentabilidade e impacto econômico nas comunidades locais. Vemos um forte crescimento do “hiperlocalismo” como tendência de consumo, incluindo temas como produtos a “quilômetro zero” com a cadeia de produção o mais próximo possível do ponto de consumo e que tem impacto positivo direto na “vizinhança”, devido as questões econômicas mas também para diminuir a pegada de carbono do ato de consumo.

Outro tema importante é a famosa “recuperação em K” onde a faixa mais afluente da população saiu mais rápido da crise, uma vez que era proprietária de ativos financeiros que se valorizaram com a enxurrada de liquidez financeira dos bancos centrais, ou que tinham negócios ou empregos mais estáveis. Enquanto isso, as camadas sociais mais desfavorecidas enfrentam dificuldades maiores, com empregos menos estáveis que foram reduzidos ou cortados, com menos segurança e reservas financeiras, sem propriedade de ativos financeiros e sofrendo na pele o efeito da inflação. Esse aumento da desigualdade vai pautar bastante as escolhas dos consumidores e ter impactos significativos em branding, pricing e, inclusive, em inovação.

E: Quais são os principais desafios da Kraft Heinz no país?  

R: Imagina que é fácil vender ketchup para italiano haha! Na verdade, nosso business de molhos e condimentos vai muito bem aqui, com fortíssimo crescimento e ganho de share.

A categoria infantil é um grande desafio. Como sabemos, a Itália tem uma das menores taxas de natalidade do mundo o que, claro,  impacta diretamente a categoria. Além disso, é uma categoria em rápida disrupção. Toda família nova passa por um momento de ansiedade onde busca absorver o máximo possível de informações sobre como cuidar do seu bebê. O influenciador nessa decisão já foi a avó que passava sabiamente seus conhecimentos adiante,  depois passou a ser o pediatra, mas hoje vemos o Google, blogs, comunidades online de mães e pais, e digital influencers como uma parte vital dessa jornada. Então hoje em dia não basta apenas você ter uma marca de confiança, histórica, amada por todos (temos uma marca de 120 anos aqui que é parte da história do país e tem um pedacinho do coração de todo italiano), não basta somente estar integrado na comunidade medico-cientifica discutindo em alto nivel e com linguagem técnica as melhores práticas em nutrição infantil, mas precisa estar participando 24/7 do diálogo contínuo entre novas famílias no digital. São muitas capabilities simultâneas que a empresa precisa dominar.

E: Como é gerenciar categorias em um bloco econômico como a Comunidade Europeia? Como balancear as particularidades e aspectos culturais de cada país com a possibilidade de ganhos de escala e sinergia ao se trabalhar em um bloco?

R: Essa pergunta é excelente, pois é o principal desafio que temos hoje. Em um ambiente relativamente pequeno do ponto de vista geográfico, temos mercados completamente diferentes. Consumidores, línguas, Go-To-Market, ambientes competitivos são totalmente diferentes em cada país. Isso é especialmente verdade para um negócio de food como o nosso, pois na Europa cada país tem uma realidade gastronômica e cultural totalmente diferente. Porém, as oportunidades de sinergia são gigantes, já que você tem 350 milhões de consumidores de alto poder aquisitivo em uma região relativamente pequena e muito bem conectada logisticamente.

Não é fácil encontrar o equilíbrio, mas o caminho que temos buscado aqui é o de entender quais são as grandes apostas, que podem ser comuns a todos os países para ganharmos escala com iniciativas centralizadas e dar muito espaço para a execução local do dia a dia.  Dessa forma, aliamos escala nos grandes pilares com agilidade e fit local. 

E: Ainda falando sobre particularidades culturais, existe algum hábito ou tendência de consumo muito específico do italiano e que se diferencie dos demais europeus?

R: São muitos, mas um que é bastante interessante é o do nosso mercado infantil. Em todos os outros países europeus, a categoria é basicamente de produtos prontos. Ou seja, você compra a papinha já pronta para comer e a usa para alimentar seu filho. As famílias que podem dedicar tempo e tem interesse em cozinhar preparam a comida do bebê em casa e aquelas que querem a conveniência da papinha tem já um produto pronto para consumo à disposição.

Mas na Itália a comida é algo muito importante, um ritual social, um ato de amor. A papinha que industrializamos é basicamente feita de insumos: você tem o produto com carne, o produto com legume, a massinha para bebês e a família coloca isso tudo na panela para cozinhar. Ou seja, acaba sendo mais rápido e cômodo do que cozinhar tudo “do zero”, mas sem perder o que eles chamam de “envolvimento emocional” do ato de cozinhar para o filho. O mercado de papinha pronta para consumo praticamente não existe. Incrível né? Acho essas diferenças fascinantes.

E: Quais semelhanças você observa entre o consumidor italiano e o consumidor brasileiro em relação a categoria que você gerencia? E quais as principais diferenças?

R: Acho que uma grande semelhança no setor de Alimentação é o papel social da comida. Somos um povo social, e comida para a gente é mais do que um ato nutricional e sim um momento de dividir, socializar, um verdadeiro ritual. Os italianos são bem parecidos nesse aspecto. A diferença é visível quando vou almoçar no escritório de Amsterdã, onde o time “engole” um sanduíche rápido em 15 minutos de break e me lembro das longas pausas que tinha na Faria Lima para comer churrasco com os colegas de trabalho ao meio dia. Nesse sentido, os italianos são muito mais próximos dos brasileiros, é claro que isso é um dado importantíssimo para um negócio como o nosso que vende comida.

Uma diferença, que acho que deve diminuir no futuro na medida que esse tema cresce em importância também no Brasil, é a atenção à sustentabilidade no ato de compra. A Itália é o país com maior percentual de reciclagem da União Europeia, com 79.7% dos resíduos urbanos e industriais reaproveitados. O consumidor realmente analisa os rótulos dos produtos para buscar aqueles mais sustentáveis, ecológicos, recicláveis ou de materiais reciclados.

Outra diferença é o patriotismo na hora de comprar e a escolha por produtos locais. Enquanto no Brasil a gente busca ativamente coisas de fora, a famosa “seção de importados” das lojas e supermercados, onde buscamos produtos que tem realmente qualidade, a Itália é um pais que valoriza muito a produção local. Para um produto usar a bandeira Italiana no rótulo deve ter toda a cadeia de produção, inclusive a matéria prima, de origem italiana. E esse é um fator decisivo na decisão de compra do consumidor. Eles literalmente “caçam” os produtos de bandeirinha italiana no supermercado.

E: Ainda comparando o Brasil com a Itália, mas agora com relação ao estilo de liderança. Existe diferença na forma de liderar times entre os dois países?

R: Nesse ponto de vista, o italiano parece muito o brasileiro. As verdadeiras diferenças de cultura no trabalho vem ao lidar com os povos do norte europeu.

Os italianos são bastante hierárquicos (o italiano acho que ainda mais que o brasileiro). Existe muito o papel da hierarquia organizacional e eles a respeitam e a valorizam muito. Também utilizam a comunicação não-linear, principalmente quando se fala de dar feedback negativo, de forma muito parecida com nós brasileiros, que deixamos tudo que é negativo, implícito, subentendido, atenuado.

Outra semelhança é o nosso modo de gerir o tempo. Os famosos 5 minutinhos atrasados para começar a reunião, 5 minutinhos de papo para esquentar os motores, e os últimos 5 minutinhos de despedidas da reunião. Bem comum entre Brasil e Itália.

Os povos mais ao norte são muito mais diretos, falam o que pensam sem medir muito as palavras, com feedbacks claros e simples mesmo quando são negativos. Além disso, são muito mais transparentes, diretos e desafiadores na forma de expor as ideias independente de hierarquia organizacional. No quesito gestão de tempo são muito mais pontuais e utilizam os momentos de reunião como uma forma de “get things done” ao invés de um instrumento de reforçar vínculos sociais.

E: Existe algum projeto do qual você mais se orgulhe durante sua experiência na Europa? E algo que você teria feito de forma diferente?

R: Algo que me orgulho muito foi o projeto de transparência de origem de ingredientes na nossa marca italiana de alimentação infantil. Temos toda nossa cadeia de suprimentos mapeada e trackeada, de forma que acompanhamos 100% da origem da nossa matéria prima, da fazenda produtora até a mão do consumidor. Porém, nos últimos anos fizemos um trabalho gigantesco de aprimoramento dessa cadeia, fazendo com que 80% dos nossos produtos tenham ingredientes italianos, ou seja, com impacto de carbono muito menor, pois a produção e o consumo estão na mesma zona geográfica e com um controle de qualidade e ambiental altíssimo. O restante  que não compramos na italiana é porque fomos buscar os melhores produtores do mundo, por exemplo as bananas da Guatemala ou o salmão do Norte da Europa.

Para dividir com o consumidor o orgulho que temos da origem da nossa matéria prima, fomos a primeira marca do setor a abrir com transparência a nossa cadeia de suprimentos, publicando o mapa da nossa produção no nosso site. Isso tudo também foi conectado à campanha de comunicação e aos materiais de PDV, convidando o nosso shopper a conhecer toda a origem da nossa matéria prima, integrando o ponto de venda físico com o tracking digital da cadeia de suprimentos.

Gosto deste projeto porque ilustra algumas coisas que acredito muito. Primeiro integração da organização e objetivos 360: não era um projeto de marketing, mas também de operações, procurement, fábrica, vendas, trade marketing, todos trabalhando juntos para levar diferenciação para o consumidor. Segundo porque acho que comunicação poderosa é a ponta do iceberg de uma diferenciação real de produto, operações e valores da empresa. Acho que essas produzem diferença real e duradoura para o consumidor. E terceiro pela agilidade que tivemos no projeto e vontade de correr riscos.

Do que eu faria diferente, com certeza teria corrido ainda mais riscos. Sim, Baby Food é uma categoria complexa, muito regulamentada e claramente um assunto sério para as mães e os pais. Mas isso não quer dizer que deva “jogar para empatar”, pelo contrário. É uma base de shoppers que se renova a cada 10 meses, então você precisa estar constantemente recrutando. Acho que poderíamos ter acelerado ainda mais algumas transformações de marca, comercial, route-to-market e digitalização. Na dúvida é melhor fazer e se arrepender do que deixar a oportunidade passar. Sempre tive esse instinto na minha carreira e saí dessa experiência com essa convicção reforçada.

 E: Para finalizar, quais os principais aprendizados profissionais dessa sua experiência e o que você levará para seus próximos passos?

R: Administrar países que você não conhece, não entende a cultura, os clientes, a língua, em categorias completamente novas é sempre um exercício doloroso mas que reforça uma convicção muito importante: o papel do líder não é tomar as decisões, ter todas as respostas, ter todas as cartas na manga. É ter boas pessoas, alinhadas, em uma cultura forte e com uma visão clara.  Ao “não poder fazer de outro jeito”, não tendo condições de tomar todas as decisões sozinho e mesmo assim entregar resultados, essa convicção e confiança só crescem. Acredito muito em uma liderança não-hierárquica,  colaborativa, ágil, com cultura forte, segurança para tomar riscos e errar, e essa experiência só me fez valorizar isso ainda mais.

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