Durante muito tempo a humanidade pensou que o Sol girava em torno da Terra. Em 1543, Copérnico demonstrou o modelo Heliocêntrico explicando que o correto era o contrário: nós é que giravamos em torno do Sol.
Essa coluna não é sobre astronomia, mas sobre como características humanas afetam nossa capacidade de utilizar dados na tomada de decisões. Isso pode acontecer de forma consciente, onde deliberadamente outras prioridades vem acima da análise objetiva, ou de forma inconsciente, através de vieses cognitivos (cognitive biases) que são padrões de comportamento irracional muito comuns, estudados na psicologia, sociologia e economia comportamental.
Tendemos a assumir que o motivo pelo qual nenhum astrônomo havia previsto o modelo Heliocêntrico era falta de capacidade técnica e matemática, mas, na verdade, essas disciplinas já eram bastante desenvolvidas muitos séculos antes de finalmente aceitarmos essa ideia. Inclusive, era bastante provável termos chegado a essa conclusão com os conhecimentos científicos da época, mas isso não aconteceu. Por que?
Bom, tudo começa com Platão e Aristóteles, que baseados em outros filósofos, escreveram no século 4o antes de Cristo que era assim que funcionava nosso cosmos.
Esses gênios da filosofia criaram as bases do pensamento filosófico ocidental. Séculos depois, a própria Igreja Católica adotou o Neoplatonismo como uma das principais bases filosóficas da teologia Cristã.
A partir do século 9, pensadores islâmicos e europeus medievais já apontavam as inconsistências matemáticas do modelo vigente.
Mas, é claro que Aristóteles e Platão não poderiam estar errados. Eles eram os gigantes do pensamento crítico. A resposta mais provável então era a de que todos os outros cientistas que demonstraram incoerências no modelo é que deveriam estar enganados. Esse é um perfeito exemplo do viés de autoridade, comprovado por diversos experimentos, que mostra que é muito difícil para um ser humano julgar um dado de forma objetiva sem ser influenciado pelo seu autor.
Além disso, consideraram impossível que o senso comum estivesse errado por tanto tempo (afinal, como poderíamos ter passado 18 séculos errando? ) e, ao invés de questionar a raiz desse pensamento, a ciência europeia mainstream da Idade Média passou a fazer ajustes cada vez mais complicados, inserindo recursos matemáticos extremamente complexos como os epiciclos (pequenas rotações dentro dos ciclos dos planetas ao redor da terra) para explicar como o modelo geocêntrico poderia funcionar. Esse é um grande exemplo do viés de confirmação onde valorizamos as informações que confirmam pontos de vista já estabelecidos e do viés de status quo onde temos tendência a desprezar idéias diferentes do normal.
Esses modelos (errados) não tinham nada de simplistas e eram extremamente avançados em termos de ciência, capacidade lógica e matemática. (Veja algumas fotos do modelo). Ou seja, a explicação alternativa ficava cada vez mais complexa enquanto a realidade era muito mais simples e estava bem diante dos nossos olhos – o problema é que não queríamos ver!
Esse é um dos maiores exemplos de bias cognitivo da História. A humanidade passou 18 séculos pensando que Aristóteles e Platão não poderiam estar errados. E quando você entra em uma jornada analítica cheio de biases, não importa o quão inteligente você é, o resultado não será bom.
Além disso, claro, não temos somente exemplos inconscientes envolvidos. Como o Neoplatonismo estava fortemente ligado à teologia católica, que estava intimamente conectada ao poder político da época, admitir que mesmo um pedacinho desse pensamento estava errado poderia ser um grave precedente e esse risco era muito claro aos donos do poder da época.
E o que isso tem a ver com as organizações?
Vivemos a era do big data. Hoje a disponibilidade de dados para a tomada de decisão nunca foi tão grande. Esse impacto mudou radicalmente o mundo dos negócios e as empresas mais valiosas do mundo hoje são empresas de dados.
Os dados viraram inclusive o centro da geopolítica global, como exemplificado pelas eleições americanas, passando pelo GDPR europeu, o nosso LGPD e com o recente movimento chines de controlar os dados de suas empresas de tecnologia.
Quem controla o dado, controla o mundo. Impossível citar uma empresa entre as Top 500 do mundo (e logo, logo, nenhuma cujo business model fique de pé, de nenhum porte) que nao tenha a análise de dados no seu centro.
Mas, como vimos em diversas colunas diferentes por aqui, tecnologia andam lado a lado com comportamento e esse caso nao é diferente.
Ainda nao vivemos em um mundo onde as decisões são tomadas pelas máquinas. A tecnologia nos permite ter acesso ao data mas ainda nao decide nada. E nesse contexto, a pecinha que comanda o computador para a tomada de decisão precisa estar a altura da base de dados.
Divido uma história pessoal que ilustra esse comportamento típico dos cientistas geocentricos da idade média e mostra como os vieses cognitivos são comuns em grandes organizações e em todos os tipos de posições.
A unidade de negócios estava passando por dificuldades. A raiz do problema tinha sido diagnosticada pelo time e era bastante complicada de resolver: envolveria um sério comprometimento de tempo e recursos. Para garantir que a decisão correta fosse tomada, a alta liderança criou um taskforce dedicado para analisar inúmeras fontes de dados. A primeira conclusão reforçou a percepção de que a única soluçao seria realmente traumática.
Com a dificuldade natural de aceitar a má notícia, a decisão foi de analisar de novo e de novo! Talvez indo mais a fundo, com mais detalhe, com quebras e mais quebras da base de dados, a conclusão fosse outra. Não foi. Mais e mais tempo ia sendo dedicado aquela análise, sempre reforçando a péssima notícia!
E como aquele paciente que recusa a aceitar que tem uma doença, a empresa continuava buscando diagnósticos mais e mais profundos ao invés de endereçar o problema.
No fim, a conclusão foi de que a forma como a empresa analisava o problema deveria estar errada (tudo para nao aceitar a má notícia). Um grupo (mais parecido com um batalhão) de consultores externos foi chamado e após meses de projeto chegaram à mesma conclusão que havia sido apresentada desde sempre pelo time local.
Imagino que você também tenha vivido as suas histórias do tipo e agradeço se as dividir comigo. Entrar em um processo analítico já sabendo as respostas que se quer ter ao final delas é perigosíssimo e nunca termina bem.
Em uma posição de liderança é muito fácil “forçar” a sua ideia sobre o seu time, mesmo que inconscientemente. As pessoas querem agradar seus superiores, o que é algo extremamente natural. E quando elas percebem que discordar é igual a desagradar elas passam a simplesmente ecoar o que a organização quer ouvir.
Estamos todos sujeitos a esses vieses que são inerentes aos seres humanos e reprogramá-los é doloroso e requer muito talento, muito treinamento, muita inteligência emocional e controle sob o ego.
Mas o esforço vale a pena e nao faltam exemplos. No ultracompetitivo mundo do mercado financeiro, Ray Dalio do Bridgewater Associates é considerado um pioneiro no uso de big data e machine learning, mas é igualmente obcecado pelo fator humano, inovando também em estilos de gestão que permitem criar uma organização verdadeiramente voltada ao que chama de meritocracia de idéias, minimizando o impacto de política organizacional e vieses. Nem mesmo a sua opinião como fundador é mais forte do que o sistema de princípios que a organização aplica na tomada de decisão. O resultado dessa combinação é o um dos maiores hedge funds do mundo com 140 bilhões de dólares em gestão.
Infelizmente, em sua grande maioria, organizações ainda tratam a revolução digital e o data science como simplesmente questão de zeros e uns. Elas fazem uma grande quantidade de investimentos para elevar a sua disciplina de data science que são, claro, extremamente válidos. Mas, compare esses esforços com a quantidade de energia investida para ensinar pessoas a tomarem decisões imparciais e aprender a gerenciar os próprios vieses.
No caminho para se transformar em uma empresa data driven, pense sim nas ferramentas, servidores, e talento técnico. Mas pense igualmente em cultura organizacional, treinamento e liderança. Quem nao o fizer, vai ter pouco espaço na economia do século 21.